terça-feira, 6 de abril de 2010

Trilha do medo


            O gosto por esportes radicais sempre acompanhou Rodrigo. Fazer trilhas era estimulante para sua imaginação e uma forma de catarse para amenizar o cansaço dos estudos e do trabalho. Rodrigo, com seu amigo André, tinha o hábito de rumar para regiões ermas do município. Faziam isso com freqüência, cartografando os lugares visitados para futuras referências.
            Em uma dessas aventuras, um incidente marcou a sua vida. Um acontecimento singular, cuja sombra maligna do maldito dia o persegue até hoje.
            Era um dia de sol escaldante e os dois amigos já haviam percorrido mais de trinta quilômetros em busca de mais uma cachoeira e paisagens exuberantes. Com os recursos de água escassos, a idéia de localizar uma fonte fresca era animadora, porém, seguindo todos os indícios da localização de uma possível fonte, os surpresos companheiros depararam-se com um paredão de rocha de um morro que, segundo seus conhecimentos, não deveria estar lá. Tendo em vista que estavam muito longe da cidade, exaustos e sedentos, sem mencionar a luz do dia que gradualmente tornava-se turva enquanto o entardecer aproximava-se, resolveram tomar um atalho calculado às pressas. O destino, porém, havia reservado para os dois ciclistas uma experiência assustadora. Um erro de André ao consultar a bússola os conduziu por uma estrada remota ao redor dos morros, matas e bosques. Com o avançar da tarde e a vontade crescente de regressar o quanto antes, ambos prosseguiram por uma trilha desolada no coração do bosque até encontrarem um indício de civilização. Não pensaram de outra forma, o telhado de uma pequena casa estava lá, indicando um lugar para pedirem água e descansarem um pouco.
            Os dois se olharam e riram, entretanto, quase que simultaneamente, os dois se deram conta de que não havia ruído algum nas proximidades, o mato dominava tudo e mesmo a trilha estava tomada de vegetação. Nenhum pássaro cantava, não se viam pequenos animais. Absolutamente nada se movia, a única exceção eram os insetos.
            André olhou para o céu onde surgiam nuvens cor de chumbo. Não ventava, o ar encontrava-se saturado pelo mormaço, era opressivo, asfixiante. Um cheiro forte de coisa velha e bolor impregnava o lugar e o zumbido das moscas apenas tornava a sensação mais repugnante.
Andaram alguns metros e encontraram um portão velho, cujas características de seus adornos indicavam um período colonial ou anterior. Uma das folhas do portão estava escancarada e pendida, o gonzo superior estava partido e corroído pelo tempo. A outra folha continuava em repouso, fechada. Atravessaram o arco do portão.
Observaram ao redor e então, finalmente, perceberam que não haviam entrado em uma casa, mas em uma cidadela. Era difícil ver claramente as construções, o mato havia tomado todas as ruelas e jardins. Os telhados estavam cobertos de limo e trepadeiras, assim como as grades das casas, mas, sem dúvida alguma, era uma cidade.
André sentou-se em um canto para descansar, mas Rodrigo, impetuoso, seguiu em frente atravessando a rua principal da cidadela, admirando as construções antigas. Quase no final da rua alegrou-se ao avistar um pomar, mas o entusiasmo não durou muito. O pomar estava doente, as frutas que nasciam eram pequenas, secas e amargas.
Regressando desanimado, ouviu uma conversa e imaginou que seu companheiro havia encontrado alguém. Aliviou-se em deduzir que alguém morasse nas proximidades, mas chegando ao local em que seu amigo estava sentado, encontrou apenas as bicicletas e a mochila de André. A situação tornava-se cada vez mais incômoda. Rodrigo estava cansado, com fome, sede, e agora, preocupado. Um ruído surgiu no mato, Rodrigo olhou assustado e acreditou ver um vulto. Esfregou os olhos, mas não havia nada. Estava quase certo de que tinha visto uma velha. Não muito longe, ouviu passos e o farfalhar de folhas. Resolveu seguir o som. Não havia nada que pudesse fazer no momento. Queria sair daquele lugar o mais rápido possível, sem olhar para trás, mas agora não poderia partir sem seu amigo. O sol morria no horizonte e, vendo-o se pôr, Rodrigo sentiu que o sol levava consigo a esperança de encontrar seu amigo e a saída da cidadela morta. Mal sabia ele que esse pensamento o atormentaria pelo resto de sua vida.
Dando as costas ao sol poente e seguindo por uma estrada lateral, Rodrigo avistou outras construções, todas deterioradas, mas com suas estruturas rústicas ainda em pé. O mato era mais volumoso neste lado da cidade e havia a necessidade de abrir caminho devagar, esmagando moitas cujas alturas superavam dois metros de altura.
O ranger de uma dobradiça fez Rodrigo olhar para a janela de uma das casas. Diferente das outras, ela apresentava escadas para chegar à sua porta de entrada, o que indicava a existência de um porão ou similar abaixo de seu assoalho. Sua estrutura era diferente das outras, mas o mato não permitia uma visão clara do que a distinguia em especial, apenas uma vaga idéia de que o antigo dono fosse um homem rico, baseando-se nos contornos e demais adornos da construção.
André estava desaparecido e a noite começava a cair, portanto Rodrigo continuou em frente chegando ao fim da rua. Ouviu o balançar de correntes e um estalo vindo de onde, naquele momento, julgou ser um galpão – só podia ser André. Não pensou duas vezes e correu até a decrépita construção para encontrar seu amigo. O galpão era um lugar escuro. Janelas diminutas com barras de ferro chumbadas iluminavam e ventilavam precariamente a única sala. O chão não tinha piso ou pavimento, sendo constituído de terra batida. Das paredes pendiam grilhões, entretanto, apesar de não estar ventando, alguns balançavam.
Algo era incômodo, a sensação de estar sendo observado deixava Rodrigo apreensivo. Como um sussurro, um lamento chegou aos seus ouvidos, um frio espectral o envolveu e alguma coisa roçou seu pescoço. Um novo som de estalo ecoou e, desta vez, muito próximo, bem à sua frente. Neste momento, sua coragem temerosa vacilou e correu o mais rápido possível para longe do lugar que, a princípio, julgou ser um galpão. Os grilhões, janelas pequenas e com grades, terra batida, os estalos, enfim, aquilo que viu e ouviu passou em sua mente e tornou-se clara a função daquele lugar no passado. Existiram escravos ali. Só não podia compreender, ou sua razão não queria acreditar, nos fenômenos que presenciava.
Correndo sem olhar para trás através do matagal, Rodrigo não pensava em outra coisa a não ser em sair daquele lugar, no entanto a dificuldade em percorrer um caminho fechado e o cansaço que se apoderava de seu corpo o fez parar em frente à escada da casa de traços peculiares. Sem saber o porquê, subiu seus degraus, atravessou a varanda e entrou pela porta que, acreditava ele, levava à sala principal. A alça de sua mochila partiu-se e precisou passá-la para a mão. Olhou a sala destruída pelo tempo, o assoalho não existia mais, as vigas eram a única forma de transitar e embaixo, no espaço que existia abaixo de seus pés. As trevas dominavam o que possivelmente seria o porão. Atravessando com cuidado, chegou a um corredor de piso firme em que havia uma escada que conduzia ao sótão e uma porta de acesso ao próximo salão.
— Até que enfim encontrei você, Rodrigo! Disse André surgindo diante do amigo.
Com o susto, Rodrigo caiu para trás, derrubando a mochila que continuou escorregando até o piso sem assoalho. A bolsa caiu fazendo um baque seco no fundo do porão. Houve outro barulho, mais ao fundo e um barulho de tábua rangendo e então uma revoada de morcegos saiu da escuridão sobrevoando toda a sala até sair pelas passagens abertas pelo tempo.
— Caramba, André, precisava me assustar assim? Estou procurando você feito um louco! Onde estava?
Rodrigo estava irritado, acabava de levar o segundo susto no lugar mais agourento que já havia visto, sem dizer que estavam ambos perdidos, no escuro e, neste momento, acabava de perder sua mochila.
— Eu é que pergunto.! Você me chamou enquanto eu descansava, fiquei procurando você até agora. Foi uma brincadeira sem graça! Sabia que estamos perdidos e está escurecendo? Precisamos sair daqui...
André se calou quando percebeu que a fisionomia de seu amigo empalidecia, mas não entendeu o motivo. Alguns segundos depois, quase que em um sussurro, Rodrigo conseguiu dizer:
— Mas eu não chamei. Encontrei um pomar e voltei, mas você já havia saído...
Silêncio novamente. Os dois se olhavam assustados.
Estava esfriando, um ar gélido envolveu os dois amigos que ainda se recompunham do susto. Lá fora, a luz da lua derramava-se de forma macabra sobre a cidadela. O silêncio era absoluto. De outro cômodo, uma tênue luz azulada surgia com o avançar da noite. Olharam pela porta, e então notaram que não estavam em uma casa, mas num casarão. O corredor por onde entrava a luz era extenso, escuro e ligava vários cômodos a ele. Em seu final a luz tornava-se mais forte. Tiveram a impressão de ver uma criança atravessando o corredor.
Sem dizer uma única palavra, iniciaram uma retirada a passos largos do casarão. Rodrigo ainda pensou em descer ao porão para recuperar sua bolsa, mas um som que ele acreditou ser um rosnado afastou a idéia de sua cabeça.
Fora da casa, a claridade mórbida da lua cheia iluminava satisfatoriamente o caminho até as bicicletas. Rodrigo podia jurar, e ainda hoje acredita nisso, que enquanto corriam para as bicicletas ouviu uma voz de criança pedindo para voltarem. O medo deu força para que os dois iniciassem uma marcha puxada para fora da cidadela, continuando na direção mal calculada. Duas horas se passaram até que puderam reconhecer o caminho. Neste momento já sabiam onde estavam e o ânimo voltou em seus rostos que até aquele momento estavam abatidos. Saíram da trilha e entraram em uma estrada de terra batida e cascalho, já utilizadas em suas aventuras, no entanto não ficaram nela por muito tempo e entraram em mais uma trilha conhecida, dentro do horto, que diminuiria a distância a percorrer.
André zombou da situação, estava alegre novamente e começou a fazer piadas, mas Rodrigo não riu. Não acabava assim, pensou. O que aconteceu não foi algo trivial e, seja o que for, ainda não acabou. Ele pressentia isso. Não sabia o motivo, só sabia que ainda sentia medo. Estava ao lado do companheiro quando olhou para trás e viu algo grande, de olhos vermelhos, vindo em direção a eles. Gritou para André, que olhou rapidamente para trás e disparou com sua bicicleta. A coisa movia-se muito rápido e Rodrigo ficou para trás. Mesmo pedalando com toda sua força, não conseguia ganhar velocidade maior. Podia jurar que sentia o hálito da criatura bem atrás e já perdia a esperança de continuar vivo, mas a trilha não era plana e para sua sorte o declive o ajudou.
Descer mais rápido não aliviou os seus temores, o que quer que fosse aquela coisa, ainda estava em seu encalço e mais aterrador que isso era a certeza de saber de onde vinha aquilo. A lembrança da escuridão do porão surgiu como um lampejo em sua mente. Aquela coisa vinha de lá! Foi isso que rosnou lá embaixo e que, em um momento anterior, provocou o ranger das tábuas e, neste momento, vinha atrás deles.
Rodrigo sabia que no fim desta trilha encontrariam uma estrada bastante utilizada por fazendeiros locais, mas era tarde, estava escuro e havia uma subida para vencer, portanto, tentou forçar sua marcha. Cruzou o limite do horto e entrou na estrada. Neste momento, com um caminho limpo e iluminado pela lua, viu seus dois pneus furados. Isso explicava porque não conseguia ir mais rápido. Mesmo assim não parou nem ousou olhar para trás novamente. Colocou a bicicleta nas costas e continuou correndo atrás de seu amigo, que já estava bastante adiantado.
Finalmente, no final da subida, alcançou o asfalto onde André o esperava debaixo de um poste e olhou uma última vez em direção ao horto. Não viu nada.
Foram andando em silêncio, não havia o que falar. Estavam muito assustados. Separaram-se apenas quando cada um precisou tomar o caminho de sua casa. Tudo estava normal enfim. Era uma noite de sábado e o movimento tomava conta da cidade.
Rodrigo entrou pelo portão de sua casa, passou pela garagem e guardou a bicicleta nos fundos. Ficou descalço, lavou as pernas cansadas e machucadas, entrou pela cozinha, bebeu muita água e comeu bastante. Depois de tomar um banho foi dormir, mas seu sono não foi tranqüilo.
Acordou com o corpo dolorido, ainda eram seis horas e estava frio. Olhou para fora. Tudo estava branco. Uma cerração cobria a cidade. Saiu pela sala, olhou a rua e recuou atônito encostando-se na parede. Pendurada na grade do portão estava sua mochila suja de sangue fresco. Havia algo pesado dentro dela e mais sangue escorria pelo fundo. Do zíper semi-aberto, Rodrigo viu a camisa que André usou no dia anterior. Estava cobrindo algo, mas não se atreveu olhar de perto. Fios de cabelo saiam dela.
Semi-oculto pela bruma, um par de olhos vermelhos parecia afastar-se lentamente, rosnando ameaçador antes de desaparecer com o nevoeiro. 


08/05/2003

Por Rafael Franzin
Baseado em lendas urbanas e nas histórias contadas por M.R.T.

2 comentários:

  1. oi...
    bom, descobri se blog e vim ler...
    tenho um blog assim, um pouco mais novo que o seu, escondido no multiply, com todos os meus testinhos malucos e terriveis!!!
    gostei do seu testo, um tanto cheio de detalhes demais, mas um bom conto de fogueira...hehe
    escreve ainda??

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  2. Sim, o blog foi feito para os meus textos. Às vezes publico outras coisas, mas geralmente são textos meus.
    E também não ando usando muito a correção gramatical de propósito.

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